sexta-feira, 16 de abril de 2010

Entrevista com Luís Bolognesi

Copiei e colei esta entrevista com Luís Bolognesi, o roteirista de "As melhores coisas do mundo" feita para o Blog Autores de Cinema. No começo há uma "rasgação de seda" dizendo que o trabalho de Luís é "um dos roteiros mais bem escritos do cinema brasileiro". Bem, ainda não ví o filme, então não posso dizer se há exageros ou não, mas de qualquer forma a entrevista é ótima, principalmente para quem tem interesse em roteiro para cinema.

Aproveite:




Bráulio Mantovani, Aleksei Abib e Thiago Dottori conversam com o escritor Luiz Bolognesi sobre o seu mais recente trabalho, dirigido por Laís Bodansky.


Bráulio Mantovani -  “As Melhores Coisas do Mundo” é um dos melhores filmes brasileiros da nossa chamada retomada. O filme tem tantas qualidades que fica até difícil enumerar todas. Atores adolescentes estreantes dão um show ao lado de atores consagrados (Denise Fraga, Caio Blat, Paulinho Vilhena) sem nenhuma desafinação. O elenco inteiro está em perfeito diapasão, o que é muito raro em filmes que fazem esse combinado. A trilha do Bid, a direção de arte do Cássio Amarante, a fotografia do Maurinho Pinheiro, a montagem do Dani Rezende – tudo funciona bem no filme. Laís Bodansky fez um trabalho primoroso, maduro, com muita energia e de impressionante eficiência.

Muito provavelmente, essa combinação de talentos funcionou maravilhosamente bem porque, no começo de tudo, havia um dos roteiros mais bem escritos do cinema brasileiro. Essa pelo menos é a minha opinião e eu faço questão de repeti-la: Luiz Bolognesi escreveu um dos melhores roteiros da cinematografia brasileira.

Quem não trabalha com cinema talvez não perceba as dificuldades que Bolognesi certamente enfrentou na escrita desse roteiro. A história é aparentemente simples, cotidiana, sem pretensões de explicar ao mundo o que é adolescência da classe média brasileira. Em outras palavras, não é um roteiro de tese. É um roteiro que conta uma história com extrema competência e enorme sensibilidade. Faz rir, chorar e pega pesado quando tem que pegar.

Não posso entrar em minúcias para não estragar as surpresas do filme. Posso dizer, entretanto, que possivelmente a maior qualidade do roteiro está na abordagem rigorosa do ponto de vista da narrativa.

O foco narrativo (ou ponto de vista) é um elemento fundamental na composição de um roteiro. Na minha experiência, é também o elemento menos compreendido pelos diretores de cinema. Os diretores participam intensamente na elaboração do roteiro (tanto que muitos não resistem a dividir o crédito com o escritor sem ter escrito sequer uma linha). Em princípio, essa colaboração é desejável. Na prática, porém, ela costuma ser problemática por uma série de razões. Entre elas, o foco narrativo.

Diretores tendem a ignorar os princípios da composição dramatúrgica, fazendo os personagens agirem de maneira conveniente e, não raras vezes, incoerente. O escritor, ao contrário, tenta respeitar os personagens, deixando que eles lhe mostrem o caminho que a história deve seguir. Bolognesi soube ouvir seus personagens como só os mestres sabem.

Um bom roteiro tem sempre um centro de gravidade, poderoso o suficiente para fazer com que todos os outros elementos de composição da narrativa orbitem em torno dele. Esse princípio vale tanto para a chamada narrativa clássica como para os filmes multiplot ou filmes experimentais. Na narrativa clássica, o centro de gravidade é o protagonista. Se o universo da narrativa não se organiza em torno dele, a história, por melhor que seja, não acontece.

Tenho lido roteiros e visto filmes com a intenção de contar muitas histórias simultaneamente. Em geral, não são filmes que podem ser definidos rigorosamente como de multiplot. Os personagens são agrupados em núcleos que interagem. E o resultado, via de regra, produz em mim a impressão de estar vendo um capítulo de telenovela, em vez de um longa-metragem.

“As Melhores Coisas do Mundo” é um filme de protagonista, apesar dos muitos personagens importantes e das muitas histórias que conta. Mas todos os personagens e todas as histórias orbitam elegantemente em torno do protagonista Mano. Daí nasce o efeito de narrativa coerente que faz com que o espectador não consiga tirar os olhos da tela. Ainda que desde o início seja possível intuir mais ou menos qual vai ser o final da história, o espectador quer saber como (e o como é sempre mais importante que o quê em qualquer narrativa que se preze) vamos chegar a esse final.

Como não conheço os livros de Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto, que deram origem ao roteiro, vou fazer ao Luiz Bolognesi algumas perguntas óbvias. Espero que o Aleksei e o Thiago me ajudem. Certamente, as respostas serão melhores que as perguntas.
Aleksei Abib: O Mano do seu roteiro é o mesmo Mano dos livros ou você combinou diferentes personagens para criá-lo?

Luiz Bolognesi: Gilberto Dimenstein diz que o Mano da série de livros escritos por ele e Heloísa Prieto são baseados nos seus filhos. O Mano do filme é inspirado no meu irmão Nando. A força que nasce na fragilidade, o caráter, o altruísmo, a capacidade às vezes trágica de absorver os problemas alheios, o donquixotismo, a maturidade revelada com sutilezas, a busca visceral da expressão artística, tudo vem do meu mano Nando. As sombras, pontos de fuga e falhas da personagem são invencionices que busquei para dar algum relevo à personagem. As peripécias do filme não foram vividas pelo meu irmão, vieram de outros cantos da memória e das entrevistas que fiz com os adolescentes. Deslocar personas afetivas de nossa memória para peripécias inéditas é um jogo bastante frutífero. Faço muito.

Thiago Dottori - Uma das maiores qualidades do roteiro é o respeito pelo protagonista. Você entrou na pele do personagem. Em nenhum momento faz julgamentos sobre as ações dele, mesmo quando são censuráveis. Como foi o seu processo pessoal de identificação com o Mano? Tem algo de autobiografia nele?

LB: Sim. Todos os filmes que escrevo são biográficos em altas doses. Não sei como fazer de outro jeito. Até porque os livros que li, as músicas que ouvi e os filmes que vi estão no âmago da minha biografia.

AA - Você é conhecido por realizar ampla pesquisa antes de escrever seus roteiros, como aconteceu em “Chega de Saudade” (você foi aos bailes para conhecer o universo sobre o qual iria escrever), ou “Terra Vermelha” (você visitou as aldeias no Mato Grosso, para mergulhar no mundo do filme). Como foi a pesquisa de “As Melhores Coisas do Mundo”?

LB: Entrevistei mais de dez grupos de adolescentes e encontrei o filme nesse processo. Uso a abordagem antropológica. Estudei cinco anos de antropologia e aprendi o método de entender a realidade do outro pelo conjunto de signifcados que ele empresta à realidade e não pela projeção interpretativa dos meus valores. Estudar os adolescentes como fiz com a tribo kaiowá em Terra Vermelha foi a chave. Claro que ao descobrir que minhas memórias afetivas tinham valor para eles, me esbaldei.
BM - Eu acho muito difícil para o escritor de cinema criar personagens adolescentes críveis. Afinal, um adolescente é, por definição, um sujeito em formação, que ainda não sabe muito bem o que pensa da vida e do mundo. Essa característica está muito bem desenhada em Mano. A dificuldade é justamente dar sentido às ações (em outras palavras, criar ações genuinamente dramáticas) para um personagem que sequer sabe definir os seus desejos e objetivos. No entanto, Mano não é um protagonista ao sabor do vento, levado pelas ações de outros (como acontece muito no cinema brasileiro). Ele é o tempo todo um personagem ativo. Você se preocupou conscientemente com isso ou simplesmente seguiu sua intuição e mandou bala?

LB: Esse era justamente o ponto fraco da primeira versão do roteiro. Quem primeiro apontou isso foi meu amigo e produtor Caio Gullane. Na primeira versão, Mano era reagente, não era ainda sujeito dramático capaz de enfeitiçar o espectador. Apontada por ele a questão e sublinhada pela diretora Laís Bodanzky, arregacei mangas procurei onde estava a vontade de ser do Mano. Busquei também peripécias diretamente ligadas a essa vontade central, situações propostas e resolvidas por ele, ora com mediação do acaso, porque isso não diminui o efeito, ora como conseqüências de suas atitudes. De fato, o roteiro cresceu.

TD - É muito comum precisar consertar alguma coisa do roteiro na montagem (algumas vezes por culpa do roteirista, outras não). Aconteceu isso em “As Melhores Coisas do Mundo”? Você mudou o roteiro na montagem? Se mudou, você pode contar algo dessa experiência, sem estragar as surpresas do filme?

LB: O montador é o melhor amigo do roteirista. Tive o privilégio de trabalhar com Daniel Rezende. Ele é um montador primordialmente preocupado com a história. Dar ritmo é sua segunda habilidade fundamental. Nesse filme, Daniel entrou no roteiro, fez excelentes observações que incorporei e alterei ainda na fase do papel. Sua brilhante montagem solucionou fragilidades dramatúrgicas, mas não houve nenhuma mudança estrutural durante a montagem.

TD - E depois de ver o filme pronto, deu vontade de mudar alguma coisa no roteiro? Quer dizer: se você pudesse reescrever o filme agora, mudaria alguma coisa?

LB: Para ser bem sincero, não. Só colocaria a cena do Mano brincando de trenzinho que num momento desalmado, Laís e Daniel subtraíram. Talvez eles tenham razão, mas ainda assim colocaria.

AA - Como foi sua relação com a Laís Bodansky no processo de escritura do Roteiro? 

LB: A Laís é tão boa comentarista e colaboradora de roteiros quanto diretora de atores. Ela tem um olhar sutil, vai no detalhe que faz a diferença. E no mergulho final do roteiro, ela submergiu comigo. Quase nos afogamos, como Pedro e Mano na piscina.

BM - Um dos textos fundamentais na minha formação profissional é “A Filosofia da Composição”, do Edgar Allan Poe. É sobre poesia, mas tem muito a ensinar sobre o nosso ofício. Nesse texto, Poe afirma que uma das estrofes de “O Corvo” é a mais importante do poema. Nenhuma outra estrofe anterior àquela poderia ser tem um efeito mais poderoso. Ele diz que se tivesse escrito uma estrofe melhor que a mais importante, não hesitaria em piorá-la, para não comprometer o efeito desejado por ele. Eu acho esse ensinamento importantíssimo para quem escreve filmes. A cena do clímax tem que ser a melhor de todas. O clímax em “As Melhores Coisas do Mundo” funciona muito bem. Você teve que “piorar” alguma cena para conseguir esse efeito? Você faria isso?

LB: Para ser sincero penso a mesma coisa, mas nunca pensei que pode ser mais fácil piorar uma cena para que a escada narrativa e emotiva não decline. Acho que indo pelo método menos inteligente, mudo as cenas de lugar para trazer a nota mais alta para seu ponto justo. Dá uma trabalheira porque às vezes desamarra tudo, por isso preciso de tempo para o roteiro.

BM: Finalmente: qual foi a maior dificuldade que você enfrentou para escrever o filme? Em todos os meus trabalhos, eu sempre revivo, em algum momento, a mesma situação de desespero: deparo-me com alguma problema para o qual não vejo solução e tenho vontade de desistir de escrever o roteiro. Aconteceu algo semelhante com você em “As Melhores Coisas do Mundo”?

LB: Houve duas dificuldades maiores. A primeira você pegou no pulo, tentar transformar um personagem reagente em sujeito dramático de onde emanam situações, implicações dramáticas e subplots. A outra dificuldade foi articular todos os clímax dos diferentes plots. Todas as tramas têm desenvolvimentos entremeados, mas independentes. Distribuir de forma eficiente os seus desenvolvimentos e clímax clareou meu cabelo de vez.

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