quinta-feira, 6 de maio de 2010

Blog do novo filme de Vicente Amorim


O novo filme de Vicente Amorim (diretor de "Um Homem Bom" e "O Caminho das Nuvens") chama-se "Corações Sujos", e se passa em 1945 numa colônia de japoneses, e está em fase de produção, você pode acompanhar o dia-a-dia da produção através do blog, que é bem atualizado.

Pra quem curte trabalhar com audiovisual ou ainda está estudando (ou está se planejando para estudar, como eu) é muito válido seguir uma produção desta forma, ver as dificuldades, as construções, os projetos de cenários, as fotos, soluções encontradas e as descontrações de uma produção. 


A varanda da casa de Aoki, em versão estúdio. Foto: Paulo Mussoi


Recentemente foi liberado uma parte do roteiro escrito por David F. Mendes, a cena é super sangrenta, tensa, violenta e delicada, e você pode ler aqui:



INTERIOR CASA DE AOKI - NOITE

Takahashi diante de Aoki. Takahashi oferece a katana (espada japonesa) para Aoki. Um momento de insuportável tensão e silêncio.

Continuamos circulando em torno dos dois... para um lado, para o outro...

Takahashi quebra o silêncio.

TAKAHASHI: [Você sabe muito bem. Se o Japão perde, não sobra um japonês no mundo. Todos se matam. Japonês nenhum ia querer viver nessa vergonha.]

Aoki nada diz.

TAKAHASHI CONTINUA: [Nenhum.]

Lentamente, solenemente, Takahashi vai recolhendo a espada que estava oferecida a Aoki, e invertendo sua posição.

TAKAHASHI CONTINUA: [Seu coração está sujo.]

AOKI: [O Japão perdeu a Guerra. Você sabe a verdade. Não aceita, mas sabe.]

A espada agora está nas mãos de Takahashi, em posição de ataque. Aoki não se move. Em silêncio, todo tenso e contraído, Takahashi se lança, com a espada em riste, sobre Aoki. Este não se defende. Recebe o golpe bruto da espada no pescoço. O golpe não é preciso. Takahashi não é um matador. Vê que Aoki sofre. Aplica um segundo golpe, mas Aoki tomba bem no instante do golpe, e Takahashi erra miseravelmente, acertando em vez do pescoço as costas de Aoki. Abre-se uma ferida longa e sangrenta. Sangue por toda parte. Aoki, caído, ainda se move, se contorce em agonia. O rosto lívido ainda fita Takahashi como numa acusação. Takahashi mal tem forças, mas desfere um terceiro e último golpe.

Apesar da violência das ações, tudo é espantosamente silencioso. Os ruídos são mecânicos. A espada contra a carne. O corpo contra o chão. Ruído de ossos se quebrando, de carne cortada, do esforço de um homem e da dor do outro. Aoki não grita. Geme, apenas, quando recebe os golpes. Gemidos breves, mas muito profundos, densos, graves. Takahashi de joelhos diante do corpo de Aoki. A poça de sangue. Em silêncio, diante do corpo, que apenas agora se aquieta de vez. A câmera para. A espada em primeiro plano.

Escutamos passos miúdos. Ele não ousa olhar para trás. Atrás de Takahashi, Miyuki, sua esposa, com a trouxa de comida que havia prometido a Aoki na mão. Aterrorizada. As mãos apertando a trouxa como se manter firme aquela trouxa dependesse sua vida inteira. Pálida de terror, ela se ajoelha bem devagar atrás do marido. Pousa a panela no chão com extremo cuidado, pois suas mãos perderam a firmeza. Takahashi afinal olha para trás. E vê, a poucos metros dele, a mulher ajoelhada com a trouxa de comida diante de si. Lívida. Mais frágil do que nunca.

Nenhum dos dois ousa se mover, nenhum dos dois ousa falar, nenhum dos dois ousa se aproximar. Paralisados. Até o rosto de Miyuki está completamente paralisado. Uma máscara. Máscara pela qual escorre repentinamente uma lágrima. Depois mais uma lágrima. E outra, e mais outra. Até que o rosto de Miyuki está banhado em lágrimas absolutamente silenciosas.

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